Pode uma empresa que completa 127 anos de atividades contar, ela mesma, a sua história? Pode, com ajuda daqueles que a preservou e de tantos outros que souberam interpretar relatos, fotos, documentos, plantas, livros-caixa e referências orais em um contínuo trabalho de pesquisa e constante descobertas.
A história desta que é uma das mais tradicionais lojas do centro de São Paulo, remonta a um local e a uma época muito distantes, temporal e geograficamente. Começa no século XIX, mais precisamente em 1895, quando chegou ao Brasil o imigrante Rizkallah Jorge Tahan.

Vindo da cidade de Alepo,Síria, onde nascera em 25 de janeiro de 1869, o jovem artesão trazia consigo os conhecimentos da manipulação do cobre, arte que aprendera com seu pai, e a vontade de prosperar em um novo e distante país.
E assim o fez. Após três anos no Brasil, fundou a Rizkallah Jorge e Cia. para, como diz uma inscrição na mesma loja que ergueu na rua Florêncio de Abreu, 123 “fazer qualquer serviço pertencente a esta arte”, a arte da fundição do cobre.
A empresa prosperou, e muito, no final do Séc. XIX e Início do Séc. XX, ainda sob o comando do fundador. Continuou a ser líder em seu segmento, quando seus filhos decidiram encerrar a fabricação própria para tornar a empresa uma das mais importantes revendedoras de materiais não ferrosos.
Quando já na terceira geração, sob gestão do neto do fundador, o atual diretor da empresa Mario Roberto Rizkallah, à fama do comércio de referência nesses materiais se somou a construção de um acervo histórico intuitivamente preservado, ainda que de forma amadora.
A preservação de documentos, fotografias, livros e objetos pessoais e produzidos na Casa da Boia encontrou o interesse de uma jovem pesquisadora da história da imigração árabe que iniciou um projeto de recuperação, catalogação e organização deste acervo, ainda em curso, mas que já produz resultados práticos e ajuda a Casa da Boia a contar a sua própria história.
Editoriais ajudam a difusão de história
Uma das vertentes da equipe responsável pelo resgate do acervo da Casa da Boia, os historiadores Renata Geraissati e Diógenes Sousa é a produção de editoriais digitais.
Textos baseados nas descobertas contidas neste vasto material ainda em análise, composto por mais de 5.000 itens documentais, em que a própria empresa generosamente fornece material para sua redação e ajudam a difundir uma rica gama de aspectos da relação da Casa da Boia com a cidade que a acolheu.

É quase como se a Casa da Boia guardasse suas próprias memórias à espera de quem as “ouvisse” e as traduzisse.
Foi durante a pandemia de Covid 19, no ano de 2020, que surge o primeiro editorial, justamente analisando o contexto da Gripe Espanhola que assolou o mundo cerca de um século antes.
Os editoriais começaram a ser escritos quando os profissionais puderam formar redes de conexões entre o material preservado e um fato de dimensões mundiais, infelizmente, representou a oportunidade de traçar um importante paralelo entre dois momentos da história.
A Casa da Boia ainda era uma empresa jovem, com seus 20 anos de atividades, o mundo enfrentou aquela que fora a maior pandemia do Séc. XX, a Gripe Espanhola.
Nossa empresa, naquele momento, teve um papel fundamental na sociedade, à medida que os produtos que então fabricava em muito ajudaram no saneamento básico, determinante para a melhoria das condições de vida na metrópole paulistana que se formava.
Essa história foi abordada no editorial “A Casa da Boia e a Gripe Espanhola de 1918”.
Em abril de 2021, pudemos compreender melhor a história da Rua Florêncio de Abreu, no editorial “Florêncio de Abreu, retratos de uma rua”.
Sendo naquele tempo a única via de comunicação entre o Largo de São Bento, no topo da colina onde a cidade de São Paulo nasceu, e os campos do Guaré, uma vasta área de pastagem localizada hoje na região da Luz, constantemente alagada pelos rios Tamanduateí e Tietê, instalar a Casa da Boia no local foi uma estratégia fundamental de Rizkallah Jorge para impulsionar o seu negócio.
Mudanças comportamentais ajudaram a empresa a crescer
Dois outros textos produzidos pelos historiadores ajudam a entender o contexto de crescimento da Casa da Boia na metrópole em que São Paulo começava a se formar.
“A água como mercadoria” aborda as mudanças pelas quais passou a sociedade paulistana quando o poder público interrompeu o fornecimento gratuito de água nos chafarizes públicos e passou a fornecê-la como uma mercadoria que, para ser adquirida, necessitava de uma infra-estrutura (encanamentos, torneiras, caixa d’água e a boia de caixa d’água).
Embora essa transição não tenha sido pacífica, os benefícios na qualidade de vida passaram a ser obviamente sentidos a medida que o saneamento se popularizava. A casa passava a ser um local mais aconchegante, como se pode ler em “A casa como símbolo de conforto” .
Estes temas do saneamento e urbanização impactaram diretamente o crescimento da Casa da Boia e ajudava seu fundador a se tornar uma pessoa influente na sociedade paulistana.
Sem jamais ter atuado na política, Rizkallah Jorge se tornou uma importante voz representante do empresariado da cidade e, mais ainda, para os conterrâneos que, como ele, imigraram para o Brasil.
Rizkallah Jorge e seu legado
Mais uma vez a Casa da Boia conta sua própria história ao preservar importantes documentos que mostram como seu fundador se articula na sociedade.
Uma das mais louváveis atuações do empresário foi junto à comunidade armênia. Embora sírio, Rizkallah Jorge não esqueceu jamais sua ascendência armênia ajudando muitos imigrantes que aqui chegavam.
O editorial “Espaços Sagrados” aborda os esforços de Rizkallah Jorge para viabilizar a construção da primeira igreja armênia da capital. Uma conquista da comunidade armênia que teve vida curta, já que o templo foi desapropriado para o alargamento da Av. Senador Queiróz.
Embora o fato tenha sido uma grande decepção para a comunidade, esta achou seu espaço de resistência em outro templo, igualmente viabilizado pelos esforços de Rizkallah Jorge e materializado na Igreja São Jorge. Esta história é lembrada no editorial “A Igreja São Jorge como Símbolo de Identidade”.
Já o editorial “A história do monumento Amizade Sírio Libanesa”, aborda questões étnicas de como os árabes imigrantes daqueles países procuraram eternizar suas raízes em São Paulo ofertando à municipalidade um monumento em comemoração ao centenário da independência.
Acervo permite um olhar para nossa própria “casa”
Os documentos integrantes do acervo da Casa da Boia permitem conhecer aspectos de sua própria sede, que, não estivessem preservados, possivelmente dificultariam a compreensão da história do imóvel.

Em “A arquitetura de nossa Casa”, os historiadores analisam com o estilo arquitetônico chamado ecletismo influenciou as construções do período em que a nossa sede foi construída, o início do Séc. XX e ajudam a explicar o porquê de termos sido considerados um patrimônio imaterial da cidade de São Paulo.
Aliás, algo relacionado ao próprio tombamento do imóvel sede de nossa empresa, no ano de 1992, abordado no editorial “Preservação como instrumento político”.
A própria memória visual da empresa pode ser reconstruída graças aos documentos preservados mostrando a riqueza da construção de uma identidade que respeita suas origens olhando para o futuro.
No texto “Construindo uma identidade visual. Presente e passado na formação de uma marca”,
Renata Geraissati e Diógenes Souza resgatam por meio dos documentos as várias identidades visuais que compuseram e compõem a marca da Casa da Boia, analisando os conceitos e significados desta evolução ao longo do tempo.
No momento em que comemoramos 127 anos de atividades, vale ainda analisar o editorial “A Casa da Boia frente ao processo de desindustrialização em São Paulo” em que é abordado os aspectos históricos e sociais que fizeram São Paulo deixar de abrigar grandes pólos industriais para ser a cidade dos arranha céus, dos shoppings, dos condomínios.
Aqui os historiadores Renata e Diógenes analisam esta mudança no perfil econômico da cidade,assim como a forma que Casa da Boia atravessou este período permanecendo, ao mesmo tempo fiel à sua essência comercial e abraçando a vocação de ser guardiã de suas memórias particulares e difusora das memórias coletivas do comércio e indústria de São Paulo, há 127 anos.
Vale finalizar lembrando que estes são apenas alguns dos aspectos multifacetados dos mais de quarenta editoriais já produzidos, todos disponíveis aqui no site da Casa da Boia Cultural e que representam, também, um legado de conhecimento que se soma ao legado da Casa da Boia.