A importância da Casa da Boia e o simbolismo do Edifício Rizkallah Jorge para a habitação de São Paulo

21 de agosto é o Dia Nacional da Habitação no Brasil, uma data que inspira não comemoração, mas sim reflexões. Afinal a habitação é um dos maiores problemas do Brasil e a cidade de São Paulo é epicentro de tensões sociais a respeito do tema que se relaciona diretamente com a Casa da Boia e indiretamente com seu fundador, Rizkallah Jorge.

O tema é tão sério e complexo que vamos começar com dois dados para reflexão. Segundo a Prefeitura de São Paulo, atualmente 34.000 pessoas vivem em situação de rua na capital (para o Observatório da População em Situação de Rua são 98.700). Por outro lado, segundo o Censo de 2022, apenas a região central da capital paulista tem 58.700 domicílios desocupados. Em toda a capital esse número beira meio milhão.

Moradores que vivem na rua no centro de São Paulo.
Moradores que vivem na rua no centro de São Paulo.

Não é difícil raciocinar em cima desses números e perceber que a quantidade de imóveis desocupados é mais do que suficiente para abrigar as pessoas em situação de rua, mas é claro que esta conta simplista não reflete a enorme complexidade do tema.

A escolha do dia 21 de agosto para celebrar a habitação é uma referência explícita à publicação da Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964. A legislação que criou o Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e o Banco Nacional da Habitação (BNH).

A criação desses mecanismos de financiamento era um esforço do Estado para centralizar e profissionalizar o crédito imobiliário em larga escala. Posteriormente, o BNH seria extinto e incorporado pela Caixa Econômica Federal em 1986, um movimento que consolidou o banco público como o principal agente financiador do setor habitacional no Brasil.

Até aí ok, o sistema até que funcionou em seus anos iniciais, mas seu caráter social foi engolido pela lógica de mercado, principalmente dos bancos financiadores. Sejamos sinceros, qual parcela da população brasileira consegue financiar um imóvel hoje? 

Propaganda de empreendimento imobiliário do BNH no bairro do Brooklin.
Propaganda de empreendimento imobiliário do BNH no bairro do Brooklin.

Considerando apenas a exigência de aporte de 30% de recursos próprios para obter um financiamento de 70% do imóvel a um valor médio de 300 a 500 mil reais por um apartamento pequeno na área da capital, chega-se aos valores de entrada entre R$ 90.000,00 a R$ 150.000,00, fora a comprovação da capacidade financeira de arcar com a dívida do financiamento por 20, 30 anos. 

Fácil é perceber que a oferta de financiamento é para poucos, ao contrário do que planejaram os criadores do SFH. Assim, uma enorme quantidade de brasileiros, a maioria, não tem acesso à “casa própria”.

Estabelece-se um problema cuja solução parece estar longe, muito longe de ser equacionada e representa a tensão fundamental que permeia a questão da moradia no Brasil: a convivência do direito social com a lógica de mercado. 

O direito à moradia, assegurado como um direito social na Constituição Federal de 1988, é basicamente concretizado por meio de operações de financiamento que, por sua natureza, estão ligadas ao sistema econômico e à atividade de bancos. Só consegue um financiamento quem tem perspectiva de renda.

A lógica do sistema capitalista se mostra incompatível com a necessidade de ofertar moradia digna a uma população cuja renda é mínima. Afinal, o proprietário de um imóvel, ainda que desocupado, vê neste bem uma fonte de renda e quer um rendimento de mercado. Algo que a população mais carente não pode ofertar.

Por outro lado, aqueles que tem condições de aquisição de um imóvel não comprarão uma unidade dentro de um edifício degradado.

Assim a lógica perversa se perpetua. Enquanto milhares de imóveis se encontram abandonados outros milhares tem sido construídos a um ritmo alucinante na capital, enquando os mais pobres não acessam nem um, nem outro.

O papel da Casa da Boia no contexto da urbanização

Vale lembrar que a Casa da Boia foi fundada em 1898 e se desenvolveu no final do Séc. XIX e início do Séc. XX., um momento social cujas condições econômicas contribuíram para o sucesso da empresa e a empresa contribuiu para o processo de urbanização, principalmente da capital paulista.

Nas primeiras décadas do Séc. XX. poucas empresas concorrentes da Casa da Boia produziam para o espaço doméstico. Segundo as pesquisas da historiadora Renata Geraissati, que estuda a imigração árabe e sua influência no urbanismo da cidade no período, a maioria das empresas que trabalhavam com o cobre produziam para a cafeicultura, então a principal atividade econômica de São Paulo.

De tudo um pouco e para o espaço domético, conforme deixava claro o catálogo da Casa da Boia dos anos 1920.
De tudo um pouco e para o espaço domético, conforme deixava claro o catálogo da Casa da Boia dos anos 1920.

A Casa da Boia, muito possivelmente pela visão empreendedora de Rizkallah Jorge, focou sua produção no ambiente urbano e no espaço do lar. Assim é que tinha uma produção tão diversificada que ia de artigos para decoração em cobre, passando por toda uma linha de lustres e luminárias, torneiras,chuveiros e material hidráulico residencial. 

A empresa atuava também no fornecimento de material hidráulico em larga escala para a construção civil, atendendo a Companhia de Gás, a Companhia de Luz, a Repartição de Águas e Esgotos e escritórios dos grandes arquitetos da época.

Estas duas vertentes da atuação da Casa da Boia voltadas para o espaço urbano e o residencial, fizeram com que a empresa se tornasse a maior de seu setor naquele momento.

Olhar a São Paulo daquela época explica ainda melhor o quanto a Casa da Boia contribuiu para a infra-estrutura urbana e residencial da cidade.

No final do século XIX, impulsionada pelo ciclo do café, a capital paulista viveu um crescimento vertiginoso. Sua população saltou de 31 mil habitantes em 1872 para cerca de 240 mil no início do século XX, alcançando quase 360 mil em 1910.

Essa explosão demográfica trouxe consigo uma crescente população de trabalhadores, que inicialmente se alojavam em moradias coletivas precárias, os cortiços, localizados no centro e em bairros adjacentes, como o Brás e a Mooca.

Diante da insalubridade e da superpopulação, o poder público e as elites locais iniciaram um processo de “higienização” e “embelezamento” da cidade. A demolição de cortiços, e a remodelação de ruas, avenidas e bairros inteiros, faziam parte de um projeto para transformar a “cidade do café” em uma metrópole com aparência europeia.

Neste processo, as famílias mais abastadas começaram a se afastar do centro, movendo-se para novos loteamentos de luxo como o Campos Elíseos e a Avenida Paulista.

O êxodo dos ricos trouxe os pobres para o centro, que não permaneceram muito…

Com os ricos deixando mansões e casarões subaproveitados pelo centro de São Paulo, estes começaram a se converter em novos cortiços, hospedagens baratas e quase sempre inadequadas, iniciando o estigma do centro como uma área degradada.

Mas este movimento não durou muito. Com o aumento dos aluguéis e a inflação a partir dos anos 1930/1940, as famílias mais pobres mais uma vez tiveram que achar soluções que pudessem lhes servir e passaram a buscar moradia nas periferias onde existiam grandes áreas a serem ocupadas a preços menores.

… e que ao saírem aprofundaram o problema

É fato que ter um centro cheio de cortiços e habitações inadequadas não é saudável nem para a cidade, nem para os moradores que viviam em situação precária, mas ao deixar o centro, a população pobre deixou um grande vazio, literal.

Edifício abandonado na Av. 9 de Julho é um dos que poderiam ser reformados para moradia.
Edifício abandonado na Av. 9 de Julho é um dos que poderiam ser reformados para moradia.

O esvaziamento do centro gerou um novo problema: uma subutilização da infraestrutura construída, com a diferença de uso entre o dia (as empresas e toda a atividade comercial) e a noite (imóveis residenciais vazios) chegando a 400%. Dava para dizer que era um centro, vivo, durante o dia e outro, abandonado, à noite.

Se os ricos saíram por vontade própria e os pobres por necessidade, o centro passou a ser o lar dos desprovidos por total. Aqueles que pelos mais variados motivos e histórias pessoais acabaram sem um lar e entraram para as estatísticas dos “moradores de rua”.

A quantidade desta população em situação de rua na cidade, um dos grupos sociais mais vulneráveis, apresenta dados que divergem significativamente dependendo da fonte. 

O Censo da População em Situação de Rua, realizado pela Prefeitura em 2021, registrou 32 mil pessoas nessa condição, em 2022. Em contrapartida, um estudo de 2024 do Observatório da População em Situação de Rua (OBpopRua), ligado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e baseado em dados do CadÚnico, aponta para um número muito superior, próximo a 100 mil pessoas.

A despeito da disparidade nas análises, o número de pessoas sem teto tem crescido de forma alarmante, com um aumento de 17 vezes entre dezembro de 2012 e dezembro de 2023.

Surgem os movimentos sociais e as “invasões”

Diante da inércia do poder público e da lógica do mercado, os movimentos de luta por moradia emergiram como atores centrais na busca por soluções. A União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP), fundada em 1987, atua na articulação de movimentos em prol do direito à moradia, reforma urbana e autogestão. 

Movimento de moradores de rua protestam por políticas públicas na Av. Paulista.
Movimento de moradores de rua protestam por políticas públicas na Av. Paulista.

Já a Frente de Luta por Moradia (FLM), fundada em 2004, defende o direito à cidade e à moradia através da organização de famílias sem teto.

As táticas de luta desses movimentos incluem mutirões para construção de moradias, que já renderam cerca de 30 mil unidades, segundo informa a UMM-SP e os protestos que buscam pressionar o governo por mais recursos e celeridade nos projetos.

Uma das ferramentas mais contundentes é a chamada “ocupação urbana” conhecida como “invasões” em que esses movimentos ocupam edifícios ociosos. Segundo ainda a UMM-SP, suas ocupações funcionam como uma forma de jogar luz ao problema de forma visível e urgente à sociedade, forçando o Estado a reconhecer a falha na efetivação da função social da propriedade e a negociar a destinação de imóveis abandonados para habitação de interesse social.

A UMM-SP e a FLM, juntamente com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), utilizam essa tática.

E aqui entra o edifício Rizkallah Jorge

Se Rizkallah Jorge, nosso fundador, em vida, foi um empresário visionário, articulado, protagonista de suas ações de sucesso, coube ao acaso, ou ao destino, que o edifício que leva seu nome, no centro da capital, se tornasse um marco na luta por moradia.

Movimentos de moradores de rua

Inaugurado em 1948 como um prédio de luxo para ser sede do Hotel Pinguim, empreendimento da Cia Antarctica Paulista (que nunca foi concretizado), o edifício localizado na Av. Prestes Maia, esquina com a rua Rizkallah Jorge e também batizado com o nome de nosso fundador, começou a se degradar a partir dos anos 1960, após a saída de um de seus ocupantes, o Grupo Votorantim.

O prédio foi abandonado na década de 1980, e o tombamento de sua fachada, em 1992, tornou sua manutenção ainda mais difícil. Essa situação de abandono e ociosidade o transformaram em uma meta óbvia para os movimentos de moradia.

O edifício foi ocupado pelo Movimento de Moradia do Centro (MMC), no final da década de 1990, uma ocupação precária e cheia de desafios, como a falta de controle de acesso, roblemas elétricos e hidráulicos, questões relacionadas à criminalidade e todo o caos que se instala em um grupo humano em um local sem condições ideais.

Entretanto a ocupação se tornou um marco na luta por moradia na capital, pois colocou a situação do imóvel em evidência e gerou pressão para a sua destinação.

Em 2001 o edifício foi adquirido pela Caixa Econômica Federal e, em parceria com uma construtora, passou por um processo de reforma e revitalização que durou até 2003. O projeto transformou os 17 andares do antigo prédio comercial em 167 unidades residenciais de baixo custo.

Exemplo de parceria que dá certo, o Ed. Rizkallah Jorge foi um dos primeiros a ser revitalizado para fins de moradia.
Exemplo de parceria que dá certo, o Ed. Rizkallah Jorge foi um dos primeiros a ser revitalizado para fins de moradia.

O financiamento para os então ocupantes irregulares veio do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), um precursor do “Minha Casa, Minha Vida” e a reforma foi um desafio, pois teve que conciliar a criação de apartamentos a um custo baixíssimo (R$ 24.700,00 na época) com a restauração de sua fachada tombada.

O sucesso do projeto, entretanto, fez do edifício Rizkallah Jorge  uma referência em habitação popular que integrou de forma coordenada o poder público, a iniciativa privada e a luta da sociedade civil, representada pelo Movimento de Moradia do Centro.

Se no dia Dia Nacional da Habitação no Brasil olha-se para os incontáveis entraves políticos, econômicos e sociais para solucionar a questão do déficit de moradias no país, conhecer a história de sucesso da revitalização do Edifício Rizkallah Jorge é um alento, à medida que aquilo que aconteceu em seu interior mostra que, sim, é possível trazer moradia decente a uma população desassistida, que só cresce, no centro da cidade, em torno de centenas de imóveis desocupados.

Fontes:

https://www.caixa.gov.br/voce/habitacao/financiamento-de-imoveis/Paginas/default.aspx

https://caixanoticias.caixa.gov.br/Paginas/Not%C3%ADcias/2023/08-Agosto/dia-nacional-da-habitacao.aspx

https://jornal.usp.br/ciencias/crescimento-de-sao-paulo-no-inicio-do-seculo-20-enfrentou-resistencia-de-moradores-do-centro/

https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2025-06/pesquisa-revela-que-sp-tem-maior-populacao-de-rua-do-brasil

https://prefeitura.sp.gov.br/web/licenciamento/w/desenvolvimento_urbano/dados_estatisticos/informes_urbanos/353210

https://portaldaflm.com.br

https://mtst.org/

https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2023/08/Infome-Urbano-59.pdf

https://casadaboiacultural.com.br/a-saga-do-edificio-rizkallah-jorge/

https://www.brasildefato.com.br/2021/11/30/como-uma-baiana-e-um-jabuti-fizeram-historia-em-ocupacao-de-um-dos-predios-mais-iconicos-de-sp

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