As mais famosas fábricas de bicicleta de São Paulo e uma visão atual do ciclismo na metrópole

Em 12 de junho de 1817 os habitantes da cidade de Mannheim, Grão-Ducado de Baden-Württemberg, assistiram pela primeira vez ao desfile de uma engenhoca de madeira com duas rodas sobre a qual seu criador realizou um feito e tanto. Se deslocou por 14 km em apenas uma hora pelas ruas do local. Não sabiam aqueles espantados alemães que diante de seus olhos circulava a primeira bicicleta do mundo.

Em meio a uma Europa que ainda se recuperava das Guerras Napoleônicas e sofria com uma das piores crises climáticas da história, um nobre alemão chamado Karl von Drais, se ocupava de buscar uma solução de mobilidade que independesse dos cavalos, então a força motriz dos veículos pequenos, como carroças e carruagens.

Idealizou então uma máquina de madeira com duas rodas, mas sem pedais, logo chamada de Laufmaschine, ou “máquina de correr”.

Reprodução de uma "Draisiana", a precursora da bicicleta.
Reprodução de uma “Draisiana”, a precursora da bicicleta.

Esta máquina rudimentar consistia em um quadro de madeira, um selim e um guidão primitivo. Para se mover, o condutor se impulsionava com os próprios pés no chão. A motivação de Drais foi uma resposta direta ao “Ano Sem Verão” de 1816, quando a erupção do vulcão Tambora no ano anterior e mudanças climáticas extremas causaram uma devastação agrícola por toda a Europa e que afetou drasticamente a população de cavalos.

A reação inicial das pessoas diante da nova invenção foi de fascínio e logo virou moda entre os ricos. Na Inglaterra, principalmente, onde ganhou o apelido de “dandy-horse”. 

Contudo, a falta de freios e os acidentes com pedestres levaram a proibições em várias cidades. Apesar do fracasso comercial, a Draisiana plantou a semente revolucionária do equilíbrio sobre duas rodas, um conceito que definiria o futuro da mobilidade pessoal e serviria de modelo para os aprimoramentos futuros que a aproximariam do que conhecemos por bicicleta.

Karl von Drais pode se orgulhar de ter inventado um dos mais populares e talvez o mais utilizado meio de transporte pessoal no mundo.

A Bicicleta desembarca no Brasil

Décadas após o surgimento da Draisiana, a bicicleta, já evoluída com pedais, correntes e pneus, chegou ao Brasil no final do século XIX. Trazida por imigrantes europeus e por brasileiros abastados que viajavam ao exterior, ela desembarcou nos portos de Rio de Janeiro e Santos como um artigo de luxo e um símbolo de modernidade.

Seu uso inicial era restrito às elites urbanas, que organizavam os primeiros clubes de “velocipedistas”. Em São Paulo, o ciclismo começou a ganhar adeptos nas chácaras e em bairros como Campos Elíseos e Higienópolis, onde os “barões do café” e suas famílias desfilavam com suas máquinas importadas. 

A bicicleta era um passatempo, um esporte, e não um meio de transporte para as massas. Tanto que a elite paulistana criou até um “velódromo” na capital. Um espaço exclusivo para a prática do ciclismo.

O velódromo paulistano, fundado em 1896.
O velódromo paulistano, fundado em 1896.

Inaugurado oficialmente em 21 de junho de 1896 para o ciclismo, foi adaptado posteriormente pelo Club Athlético Paulistano para a realização de partidas de futebol, tornando-se a primeira edificação para a modalidade do país, a partir de 1901. Mas, o assunto aqui não é futebol é bicicleta.

Com o surgimento de uma indústria nacional e a formação dos centros urbanos adensados por trabalhadores destes pólos industriais o veículo, antes símbolo de status, começou a ser utilizado pelos operários de fábricas paulistanas como uma alternativa ao transporte por meio dos bondes e a crescente demanda pelas “magrelas” chamou a atenção de um imigrante italiano chamado Luigi Caloi, que percebeu a necessidade de uma empresa especializada na manutenção, no conserto e na importação de peças para esta frota em crescimento.

A campanha "Não esqueça a minha Caloi" entrou para o imaginário das crianças das décadas de 1970 e 1980.
A campanha “Não esqueça a minha Caloi” entrou para o imaginário das crianças das décadas de 1970 e 1980.

Assim, em 1898, mesmo ano de fundação da Casa da Boia, Luigi fundou a Casa Caloi, uma loja de importação e manutenção de bicicletas no centro de São Paulo. O pioneiro não tinha, digamos, aspirações maiores e a oficina e importadora foi seu negócio até a segunda geração dos Caloi assumir a gestão, já nos anos 1940.

Em 1945, sob o comando de seu filho Guido, a Caloi, já estabelecida no bairro do Brooklin, deixou de ser apenas importadora para se tornar a primeira grande fábrica de bicicletas do Brasil. Seus primeiros produtos eram modelos robustos e clássicos, mas foi nos anos 70 que a marca se imortalizou. Com o slogan inesquecível “Não esqueça a minha Caloi”, a empresa transformou a bicicleta em objeto de desejo de toda criança da época.

Se os Caloi foram os pioneiros nos negócios de “bikes” por aqui, não demorou muito para a concorrência perceber que o mercado brasileiro era promissor. Em 1948 foi criada a Monark S.A. empresa brasileira que obteve a licença para produzir aqui as bicicletas da marca sueca Monark. A fábrica se instalou no bairro da Chácara Santo Antônio, bem próxima da sua concorrente e a Monark rapidamente se destacou pela inovação e pelo design arrojado.

Lançamento da "Monark Tigrão".
Lançamento da “Monark Tigrão”.

Duas fábricas praticamente no mesmo bairro, disputando o mesmo público consumidor, se esforçavam permanentemente para se diferenciar, tanto em sua linha de produtos como em sua comunicação.

A rivalidade entre as duas gigantes paulistanas marcou gerações. Se a Caloi tinha a dobrável Berlineta, a Monark respondia com a icônica Monareta, mas a “briga” mais emblemática, no entanto, aconteceu no segmento de bicicletas de corrida, que explodiu nos anos 70 e 80. 

A Caloi 10, lançada em 1972, se tornou um fenômeno de vendas, um ícone e um símbolo de esportividade. A Monark não deixou por menos e lançou a Monark 10, com design e componentes similares, alimentando uma competição acirrada nas lojas e nas ruas. 

Anúncio do lançamento da Caloi 10.
Anúncio do lançamento da Caloi 10.

As campanhas publicitárias em revistas e na televisão eram agressivas, cada uma exaltando a performance, o design e a liberdade que suas “dez marchas” (uma novidade à época) proporcionavam.

As duas empresas ainda estão em atividade no Brasil, mas ambas se mudaram da capital paulista. A Caloi atualmente fabrica suas bicicletas em Atibaia e a Monark tem sua fábrica na cidade de Indaiatuba.

A metrópole começa a enxergar a bicicleta de outra forma

Por décadas a bicicleta foi um veículo associado mais ao lazer do que a políticas de mobilidade urbana. Tanto assim que o ciclista nunca foi visto pelos motoristas de automóveis como parte integrante do sistema de trânsito (embora este veículo e as regras de sua condução estejam previstas no Código de Trânsito Brasileiro há muitos anos).

Até o final dos anos 1990, ciclista na rua era um “estorvo” para os demais motoristas.

E não foi fácil mudar esta mentalidade. Embora hoje a sociedade esteja mais acostumada com a bicicleta como meio de transporte as atitudes da maior parte dos motoristas em relação aos ciclistas continua a mesma.

Por décadas, pedalar em São Paulo foi um ato de coragem, restrito a atletas e a trabalhadores que usavam a bicicleta como o único meio de transporte possível em meio ao trânsito caótico. A mudança para uma política cicloviária mais estruturada é um fenômeno recente.

Uma imagem impensada ataualmente. Família passeando de bicicleta em plena Av. Paulista, em 1973.
Uma imagem impensada ataualmente. Família passeando de bicicleta em plena Av. Paulista, em 1973.

As primeiras iniciativas de grande visibilidade na cidade de São Paulo foram as Ciclofaixas de Lazer, implementadas a partir de 2009, durante a gestão de Gilberto Kassab. Montadas apenas aos domingos e feriados, elas conectavam parques e áreas de lazer, reintroduzindo a bicicleta no imaginário da cidade como uma opção de recreação segura.

A grande mudança na infraestrutura dedicada à bicicletas na cidade, no entanto, ocorreu durante a gestão do prefeito Fernando Haddad (2013-2016). Com a meta de humanizar o trânsito e oferecer alternativas ao carro, a prefeitura iniciou uma expansão massiva da malha de ciclovias (pistas segregadas e permanentes, diferente das ciclofaixas). 

Apesar de ser uma iniciativa amplamente adotada em países desenvolvidos da Europa, por exemplo, a reação dos motoristas, comerciantes e moradores das vias que tiveram ciclovias implantadas foi absolutamente retrógrada. Ninguém queria uma ciclovia na sua porta, muito porque a implantação dessas vias exclusiva “roubou” vagas de estacionamento.

A implantação, por sua vez, foi feita sem muito debate público e de forma às vezes descoordenadas. Não era raro encontrar ciclovias que começavam e terminaram “no nada”, ou seja. Não compunham uma malha viária estruturada. 

A iniciativa patinou por muito tempo mas, inegável é que ela trouxe a bicicleta à discussão da sociedade e, aos poucos, ver alguém utilizando o veículo para ir e voltar do trabalho ou escola deixou de ser raro, para se tornar uma cena cada vez mais comum.

Malha cicloviária cresce, mas problemas continuam

Atualmente São Paulo continua a expandir sua infraestrutura de ciclovias. De acordo com dados da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), até o início de 2025, a cidade contava com uma malha cicloviária de aproximadamente 731,9 km.

Embora os números de ciclistas variem, a Pesquisa Origem e Destino do Metrô, uma das mais abrangentes sobre mobilidade na região metropolitana, já indicava em sua última edição centenas de milhares de viagens diárias por bicicleta. A pandemia de COVID-19 acelerou ainda mais essa tendência, com muitos paulistanos adotando a bicicleta como uma forma de transporte segura, saudável e sustentável. 

As bicicletas compartilhadas, operadas por empresas de tecnologia, também se tornaram parte da paisagem, facilitando o acesso e consolidando o lugar das duas rodas no complexo sistema de transporte da maior cidade do Brasil. 

Uma "ghostbike". Bicicleta pintada de branco sinaliza o local onde uma ciclista foi atropelada e morta. Uma forma de chamar a atenção da sociedade para a questão do respeito à vida do ciclista.
Uma “ghostbike”. Bicicleta pintada de branco sinaliza o local onde uma ciclista foi atropelada e morta. Uma forma de chamar a atenção da sociedade para a questão do respeito à vida do ciclista.

Embora os números estatísticos dos órgãos de trânsito paulista indiquem uma redução no número de acidentes e mortes de ciclistas na capital, fato é que o ciclista sempre é o mais vulnerável nesta situação.

A Companhia de Engenharia de Trânsito de São Paulo promove permanentemente um curso de quatro horas chamado “Pedalar com segurança”. É uma atividade presencial, realizada no bairro da Barra Funda que objetiva “proporcionar o aperfeiçoamento do ciclista em suas habilidades e promover o acesso a informações fundamentais para o uso responsável e seguro da bicicleta como meio de transporte, no exercício de atribuições profissionais ou em momentos de lazer”.

Informações e inscrições podem ser feitas no site da CET: https://www.cetsp.com.br/consultas/educacao/cursos/condutores/pedalar-com-seguranca.aspx

Na outra ponta desta relação, a CET também promove dois cursos online voltados aos motoristas de automóveis e aos pilotos de motocicletas. Ambos abordam conceitos de direção defensiva, equipamentos de segurança, legislação e boas práticas na condução destes veículos:

Curso de pilotagem segura para motociclistas: https://www.cetsp.com.br/consultas/educacao/ensino-a-distancia/condutores/curso-de-pilotagem-segura.aspx

Curso de direção defensiva para motoristas:

https://www.cetsp.com.br/consultas/educacao/ensino-a-distancia/condutores/curso-de-direcao-segura-tecnicas-e-conceitos-de-direcao-defensiva.aspx

Fontes:

https://www.monark.com.br/a-monark

https://caloi.com

https://www.facebook.com/GaleriadaSaudade

https://vadebike.org

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