Breve história do “dinheiro paulista”

São Paulo, 2 de Outubro de 1932, Após quase três meses de intensos combates, o estado de São Paulo se rendia às forças do governo federal de Getúlio Vargas, derrotado na tentativa de derrubar o governo federal no levante que exigia o retorno à legalidade democrática e a promulgação de uma nova Constituição, conhecido como “Revolução Paulista de 1932. São Paulo saiu derrotado, mas a mobilização e a criatividade durante o conflito resultaram em fatos curiosos, dentre eles a criação de um sistema de emissão de dinheiro e uma campanha de financiamento de guerra que marcaram a história paulista.

A história da chamada Revolução de 1932 é amplamente conhecida. Resumidamente, foi um movimento armado liderado pelo estado de São Paulo contra o governo autoritário de Getúlio Vargas, que assumiu o poder em 1930 após um golpe. 

O objetivo principal era a convocação de uma nova Constituição para o país (e a reconquista do poder político perdido pelas elites paulistas). 

Após as forças políticas e militares do estado de São Paulo deflagarem um movimento armado para derrubar o governo federal em 9 de julho de 1932, intensos combates se sucederam pelo estado, principalmente na região do Vale do Paraíba (que era o caminho para chegar ao Rio de Janeiro, então sede do Governo Federal). 

Como é sabido, após cerca de três meses de batalhas as tropas paulistas se renderam, mas apesar da derrota militar, a revolta impulsionou a elaboração da Constituição de 1934, que trouxe avanços democráticos e sociais significativos para o Brasil. 

Na crise, soluções inusitadas

Com a eclosão do conflito, em julho de 1932, o governo federal decretou o confisco das rendas da Fazenda Estadual de São Paulo e o bloqueio dos recursos dos paulistas nos bancos, em um esforço para reduzir drasticamente o financiamento e o investimento de São Paulo em equipamentos, veículos e suprimentos para a guerra. 

Sem acesso ao papel-moeda emitido pelo Tesouro Nacional, e com o receio de que a falta de circulação de dinheiro parasse a economia e desmoralizasse a causa revolucionária, o governo paulista, liderado pelo governador Pedro de Toledo, buscou uma solução radical: emitir sua própria moeda.

A ideia inicial partiu do empresário Francisco Matarazzo Júnior, que sugeriu a emissão de “Bônus do Tesouro do Estado de São Paulo”. O objetivo não era substituir permanentemente a moeda nacional, mas criar um papel-moeda de emergência, garantido pela riqueza de São Paulo, que pudesse circular internamente, pagar tropas, fornecedores e manter o comércio do estado ativo.

Sufocado pelo bloqueio federal, o plano foi amplamente aceito pelas autoridades e se desenvolveu rapidamente. Mas havia uma questão. Era preciso encontrar uma empresa com a tecnologia, a segurança e a capacidade de produção necessárias para imprimir cédulas em tempo recorde.

São Paulo era, como se costumava dizer à época, a “locomotiva” industrial do Brasil e não foi muito difícil encontrar uma empresa com essas características. 

A escolhida para a missão foi a Companhia Melhoramentos de São Paulo.

De editora a emissora de dinheiro

Construção da fábrica da Cia. Melhoramentos na Lapa.

A Companhia Melhoramentos de São Paulo foi fundada por Antônio Proost Rodovalho e pelos irmãos Otto, Alfried e Walther Weiszflog, em 1877. Inicialmente como uma fábrica de cal, passou a produzir papel a partir de 1890 e no ano de 1915 a Editora Melhoramentos lançou o primeiro livro impresso colorido no Brasil, “O Patinho Feio”, de Hans Christian Andersen, ilustrado por Francisco Richter.

A Melhoramentos se tornou amplamente conhecida no país a partir de então, justamente por sua divisão editorial, responsável pela publicação de livros didáticos, literatura infantil e, futuramente, dicionários.

A partir de 1921 a empresa constrói seu parque gráfico no bairro da Lapa, em São Paulo e foi a modernidade e a segurança de suas impressoras e tintas, além de sua já notória reputação, que a credenciaram a assumir o papel de “Casa da Moeda Paulista”. 

Sem ter muito “para onde correr” e pressionada pelo governo paulista, a Melhoramentos passou a imprimir milhares de cédulas, conhecidas popularmente como “dinheiro paulista”.

Cédula de 20 mil Réis "paulistas".
Cédula de 20 mil Réis “paulistas”.

As cédulas emitidas pela Companhia Melhoramentos de São Paulo eram oficialmente chamadas de Bônus do Tesouro do Estado de São Paulo. Seu design refletia a urgência e a necessidade de conferir-lhes legitimidade, apesar de serem uma emissão de guerra,

As notas possuíam um design mais sóbrio e tipográfico do que as cédulas federais da época, mas a qualidade da impressão era alta (graças ao maquinário moderno da Melhoramentos), o que dificultava a falsificação, um risco constante em emissões emergenciais.

Elas exibiam a inscrição “ESTADO DE S. PAULO – BÔNUS DO THESOURO” em destaque e também carregavam o número da lei estadual que autorizava sua emissão e a promessa de resgate. Tinham as assinaturas impressas do Secretário da Fazenda do Estado de São Paulo (na época, Dr. Jorge Tibiriçá de Castro ou seu substituto, dependendo da série) e do Diretor do Tesouro Estadual.

Cédula de 5 mil Réis com o propósito revolucionário.
Cédula de 5 mil Réis com o propósito revolucionário.

Para aumentar a segurança e dificultar as fraudes, muitas dessas cédulas continham um selo seco (uma estampa em relevo, sem tinta) do Tesouro do Estado, aplicado sobre a nota.

Algumas séries faziam uso de imagens ou alegorias que remetiam à riqueza e à pujança econômica de São Paulo, como representações de café, principal produto da economia paulista na época.

Foram emitidas cédulas em diversos valores, sendo as mais comuns as notas de 5, 10, 20 e 50 Mil Réis.

A moeda circulou de fato em São Paulo, cumprindo seu papel emergencial durante os poucos meses do conflito. Contudo, após a derrota, o governo federal impôs ao estado que as cédulas fossem recolhidas e trocadas por moeda nacional. Grande parte da produção foi destruída, mas o episódio se consolidou como um marco de autonomia e resistência.

Impactos Econômicos

A emissão e circulação dos Bônus do Tesouro, mesmo com sua vida curta, tiveram efeitos imediatos e de longo prazo na economia paulista, durante e após a Revolução.

O impacto mais fundamental foi evitar o colapso econômico do estado. Com o bloqueio das verbas federais, a moeda paulista garantiu que o governo pudesse pagar as tropas e os fornecedores de alimentos, munições e equipamentos, trazendo liquidez na economia local e mantendo o comércio ativo.

Frente da cédula de 5 mil Réis.
Frente da cédula de 5 mil Réis.

A emissão, garantida pelo Tesouro do Estado (teoricamente apoiado na riqueza do café e das indústrias), gerou uma confiança regional que permitiu que o dinheiro fosse aceito dentro das áreas controladas por São Paulo, funcionando de fato como uma moeda corrente.

Por outro lado, por ser uma moeda de guerra com aceitação restrita, havia um risco constante de perderem valor e serem recusadas em outras partes do Brasil, o que de fato deu o caráter “paulista” à moeda. 

Após a derrota paulista em outubro de 1932, o governo federal de Getúlio Vargas impôs o recolhimento imediato desses bônus. O Tesouro Nacional assumiu a responsabilidade de trocá-los pela moeda federal padrão (Réis), na paridade nominal. Isso foi uma manobra política para reafirmar o monopólio federal sobre a emissão de moeda e para evitar uma crise financeira no estado.

O resgate impediu ainda que a moeda paulista se tornasse um problema de longo prazo. Ela cumpriu sua função emergencial durante os três meses de guerra, demonstrou a capacidade de autogestão do estado e entrou para a história como um símbolo da resistência, mas não deixou um legado monetário permanente, sendo rapidamente erradicada da circulação.

A medalha “moeda paulista”

Medalha "Moeda Paulista 1932".
Medalha “Moeda Paulista 1932”.

Ao final do conflito o Governo de São Paulo instituiu a medalha “Moeda Paulista, honraria concedida àqueles que tiveram relevante papel durante a revolução.

Feita em prata, a medalha trazia os seguintes versos do poeta Guilherme de Almeida:

Moeda Paulista, feita só de alianças,
feita do anel com que Nosso Senhor
uniu na terra duas esperanças:
feita dos elos imortais do amor!

Quanto vale essa moeda? Vale tudo!}
Seu ouro eternizava um grande ideal:
e ela traduz o sacrifício mudo
daquela eternidade de metal.

Ela, que vem na mão dos que se amaram,
Vale esse instante, que não teve fim,
em que dois sonhos juntos se ajoelharam,
quando a felicidade disse: SIM.

Vale o que vale a união de duas vidas,
que riram e choraram a uma só voz
e, simbolicamente desunidas,
vão rolar desgraçadamente sós.

Vale a grande renúncia derradeira
das mãos que acariciaram maternais,
o menino que vai para a trincheira,
e que talvez… talvez não volte mais…

Vale mais do que o ouro maciço:
vale a glória de amar, sorrir, chorar,
lutar, morrer e vencer… Vale tudo isso
que moeda alguma poderá comprar!

Um legado arquitetônico e histórico

A antiga sede da Companhia Melhoramentos na Rua Tito, 479, foi tombada pelos Conpresp no ano de 2009, tombamento que deixou de fora as instalações industriais. 

Fachada da Casa Melhoramentos.
Fachada da Casa Melhoramentos.

Erguida em 1948, a sede administrativa firmou-se como um dos pilares da urbanização do bairro. A importância do complexo era tamanha que os moradores do entorno chegaram a promover manifestações para que seu tombamento fosse total, mas sem sucesso.

Fora da proteção de órgãos públicos de preservação do patrimônio, o espaço onde ficavam os galpões foi comprado por uma incorporadora de empreendimentos de luxo.

Atualmente a antiga sede da empresa abriga a “Casa Melhoramentos”, um complexo particular, com salas para eventos corporativos, coworking e uma área de exposições aberta ao público.

Ouro Para o Bem de São Paulo

Paralelamente à criação da moeda paulista e em razão do sufocamento financeiro, o estado de São Paulo, deflagrou uma das mais impressionantes campanhas cívicas da história brasileira: a campanha “Ouro Para o Bem de São Paulo”. 

A ideia, que também ganhou força no início da revolução, visava arrecadar ouro, joias e outros bens de valor para financiar a compra de armamentos, munições e suprimentos para as tropas.

A campanha foi um sucesso estrondoso de adesão popular. Inspirada em iniciativas de financiamento de guerra de outros países, ela mobilizou a população mais rica e a classe média, com mulheres tendo um papel central na organização das doações. 

Perspectiva artística do futuro edifício "Ouro para o Bem de São Paulo".
Perspectiva artística do futuro edifício “Ouro para o Bem de São Paulo”.

Pessoas doavam de tudo: anéis de casamento, colares, barras de ouro e até moedas antigas, muitas vezes depositadas em urnas públicas ou levadas a postos de coleta.

O ouro e as joias doadas eram fundidos e transformados em barras de ouro que, após o fim do conflito, foram usadas para liquidar dívidas de guerra e, posteriormente, em parte, incorporadas ao Tesouro do Estado. 

Existe um registro físico e remanescente dessa campanha, localizado a poucos quarteirões da Casa da Boia, próximo à Praça da Sé: um edifício que leva o nome da campanha, localizado na Rua Álvares Penteado, 23 (Largo da Misericórdia), bem próximo da Estação da Sé do Metrô.

O icônico edifício tem 13 andares representando as 13 listras da bandeira paulista e foi inaugurado em 1939.

Projetado pelo escritório Severo & Villares e erguido pela Cia. Construtora Camargo & Mesquita, o prédio foi idealizado para que sua fachada imitasse a bandeira do Estado de São Paulo tremulando, sendo que no topo da edificação foi construída uma réplica, em tamanho gigante, de um capacete de soldado constitucionalista. 

A verba utilizada em sua construção foi o saldo da arrecadação da campanha.

Domo de cobre, no formato dos capacetes dos revolucionários, no topo do edifício.
Domo de cobre, no formato dos capacetes dos revolucionários, no topo do edifício.

O prédio se caracterizou por abrigar escritórios de empresas, instituições e profissionais liberais, mas nos últimos anos, a exemplo de outros, no centro, vem enfrentando perda de inquilinos. Com isso sofre deterioração.

Atualmente pertence ao patrimônio da Santa Casa da Misericórdia, que recentemente colocou o edifício à venda, assim como outros de sua propriedade, para sanar dívidas da entidade.

Fontes:

https://www.melhoramentos.com.br/nossa-historia/

https://vejasp.abril.com.br/coluna/memoria/melhoramentos-centro-cultural

https://www.instagram.com/casamelhoramentos

https://prefeitura.sp.gov.br/web/cultura/w/conpresp/noticias/6281

https://caraoucoroa.blogosfera.uol.com.br/2019/02/15/a-casa-da-moeda-alternativa-que-fez-dinheiro-de-sp-na-revolucao-de-32

https://moedas.hi7.co/-ouro-para-o-bem-de-sao-paulo–1932-56c6b96305eec.html

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