A Jornada do Patrimônio e a Casa da Boia como Valor Cultural

No próximo final de semana, dias 16 e 17 de agosto, acontece a 11ª edição da Jornada do Patrimônio, na cidade de São Paulo. O evento propõe ampliar o conhecimento, trazer reflexão e a oportunidade de conhecer os patrimônios materiais e imateriais da cidade. Conheça um pouco da história deste evento e também de como, ao longo dos anos, a Casa da Boia foi reconhecida como Valor Cultural da Cidade de São Paulo.

“Tempo em sentidos”. Este é o tema da Jornada do Patrimônio da Prefeitura de São Paulo em 2025. A proposta convida a uma experiência sensorial pelo patrimônio, explorando como a percepção individual e as diferentes sensações se entrelaçam com as memórias e histórias dos lugares, objetos e manifestações culturais.

Criada em 2015, a Jornada do Patrimônio é um evento anual organizado pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, com o objetivo de valorizar o patrimônio cultural da cidade em seus diversos territórios.

Nem tudo é motivo de comemoração

Já que o tema proposto pela Jornada do Patrimônio é o “Tempo em Sentidos”, vale uma reflexão sobre a cidade de nosso tempo e o que anda acontecendo com nosso patrimônio. 

Talvez a primeira sensação que se tem ao nos referirmos ao patrimônio seja a de preservação. Lembramo-nos dos bens culturais e arquitetônicos públicos ou privados de São Paulo que se encontram em bom estado de preservação e uso, como o Theatro Municipal, a Estação da Luz e o Mosteiro de São Bento, para citar apenas três.

Contraste entre a conservada Casa da Boia e o deteriorado Casarão Marieta Teixeira de Carvalho.
Contraste entre a conservada Casa da Boia e o deteriorado Casarão Marieta Teixeira de Carvalho.

Mas, patrimônios como o casarão Marieta Teixeira de Carvalho, datado de 1878, e, ironicamente de propriedade do mesmo bem preservado Mosteiro de São Bento, encontram-se em avançado estágio de deterioração, apesar de tombados pelo Patrimônio Histórico Municipal.

Aliás, o próprio Departamento de Patrimônio Histórico, da Prefeitura de São Paulo, responsável pela Jornada do Patrimônio, tem adotado resoluções polêmicas, como a recente autorização de funcionamento de uma churrascaria, que realizou obras que descaracterizaram o local, dentro do complexo do parque Fernando Costa (Parque da Água Branca), também tombado pelo DPH.

Vale recordar também que só por pressão popular não viraram shopping centers o Complexo Esportivo do Ibirapuera e o complexo hospitalar da Cruz Vermelha, na mesma região, que teve alvará de demolição expedido pela prefeitura poucos dias antes do Conpresp abrir o processo de análise de seu tombamento (ainda sem conclusão, ressalte-se).

Imóveis centenários na própria rua Florêncio de Abreu, onde fica a Casa da Boia, tombados pelo patrimônio municipal, se deterioram dia a dia, colocando a perder, talvez, o maior conjunto arquitetônico ainda remanescente de forma contígua no centro da cidade.

Mas a Casa da Boia é um polo de resistência

Já abordamos em diversos textos em nosso blog e editoriais a história do edifício sede da Casa da Boia e não podemos deixar de relembrar como “uma edificação de uso prático” nossa fábrica e residência da família Rizkallah no início do Séc. XX, se tornou um patrimônio paulistano e brasileiro.

Processo de restauração da Casa da Boia (1997).
Processo de restauração da Casa da Boia (1997).

O sobrado em estilo eclético,construído na primeira década do Séc. XX pelo fundador da Casa da Boia, Rizkallah Jorge Tahan nasceu como qualquer outra de sua época, muito embora Rizkallah Jorge não tenha economizado em sua nova residência. 

Ergueu um sobrado ricamente ornamentado em sua fachada, que apresentava elementos da cultura árabe e ocidental, como a data da edificação, expressa em algarismos romanos e árabes, gradis delicados, com inspiração orgânica, típicos da Belle Époque, que contrastavam com com o uso do granito nos acessos à loja. 

Em seu interior, delicadas pinturas nas paredes, madeiras nobres, ambientes amplos e uma planta generosa em espaços de convivência garantiam o conforto da família Rizkallah até se mudarem, uma década depois, para um palacete na Avenida Paulista.

A empresa, que nunca deixou de funcionar no local (e funciona até hoje, aliás) passou a ocupar as salas da antiga residência e a adaptá-las às necessidades comerciais, descaracterizando parte do imóvel, o que viria a mudar a partir da chegada do atual diretor da empresa Mario Rizkallah.

Em 1974 a Coordenadoria Geral do Planejamento-COGEP, órgão da Prefeitura de São Paulo, contratou Benedito Lima de Toledo e Carlos Lemos (falecido no último dia 6 de agosto, aos 100 anos de idade), urbanistas e professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, para identificar no perímetro central da cidade, imóveis que tivessem importância histórico-arquitetônica para o município.

Neste estudo os arquitetos já colocaram a sede da Casa da Boia com um destes imóveis que mereciam atenção do município, já que se enquadrava nos critérios de  importância histórico-arquitetônica.

Mas 20 anos ainda decorreram até que a cidade de São Paulo realizasse o tombamento do Vale do Anhangabaú, (Resolução 37/92 do Conpresp) determinando o tombamento de 293 edificações e 9 logradouros públicos no entorno do Vale. Dentre os imóveis tombados encontrava-se o edifício-sede da Casa da Boia.

Mario Rizkallah, diretor da Casa da Boia e responsável pela restauração do sobrado.
Mario Rizkallah, diretor da Casa da Boia e responsável pela restauração do sobrado.

“Eu não havia tido conhecimento deste tombamento à época. Vim a descobrir anos depois, quando a prefeitura propôs a alguns proprietários de imóveis da rua que aderissem a um programa de revitalização, de restauração das fachadas de seus imóveis, no ano de 1996”, conta Mario Roberto Rizkallah, diretor da Casa da Boia.

“Fui um dos poucos na rua que aceitou fazer a restauração da fachada da forma correta. Uma coisa é contratar um pintor e dar uma mão de tinta na parede, outra, bem diferente, é promover uma restauração com caráter de preservação histórica, muito mais complexa e custosa”, lembra Mario.

“Inicialmente iríamos restaurar apenas a fachada, mas pesquisando as pinturas originais das salas do sobrado começamos a achar belas pinturas decorativas, conta Mario Rizkallah.

Restauramos também duas salas, além da fachada e as inauguramos no centenário da Casa da Boia, no ano de 1998″. 

Em 2003, quando a empresa completou 105 anos, mais duas salas do andar superior foram restauradas e várias outras salas do imóvel já passaram por prospecção a fim de identificar suas características originais e esperam sua vez de também voltarem ao aspecto original.

O início de um profundo processo de ressignificação…

“Eu não me senti prejudicado pelo tombamento da Casa da Boia, porque eu mesmo ‘tombei’ o meu imóvel, decidindo mater suas características originais. Toda a conservação do prédio é feita por nós, já que a empresa ocupa o edifício e também porque tenho todo interesse em manter esse legado, mesmo sem qualquer apoio do poder público”, afirma Mario Rizkallah.

Grupo de visitantes conhecem as histórias da Casa da Boia durante uma visita guiada.
Grupo de visitantes conhecem as histórias da Casa da Boia durante uma visita guiada.

Quem entra no sobrado nº 123 da Florêncio de Abreu, encontra uma loja com elementos preservados tal qual eram no dia de sua inauguração, há mais de um um século. Mais do que isso, encontra um ambiente em que o moderno ‘conversa’ com o passado, tanto na arquitetura, quanto no conceito do próprio espaço, que preserva objetos originais do início do Séc. XX junto com produtos tecnológicos. 

Aliás, tudo a ver com o tema da Jornada do Patrimônio “Tempo em Sentidos”.

O visitante que acessa nosso sobrado tem contato com referências explícitas da história da empresa e admira um minucioso trabalho de recuperação dos antigos moldes da fundição, coordenado pela diretora Adriana Rizkallah, responsável, também, pelaambientação da loja e pela rigorosa manutenção do imóvel, como ela mesma explica:

Adriana Rizkallah, responsável pela criação do projeto "Casa da Boia Cultural" e pela ressignificação dos ambientes do sobrado.
Adriana Rizkallah, responsável pela criação do projeto “Casa da Boia Cultural” e pela ressignificação dos ambientes do sobrado.

“Manutenção não é ‘apagar incêndio’. Exige um planejamento diário, semanal, mensal e anual de procedimentos que garantem não apenas o bom funcionamento das instalações, mas também a preservação deste patrimônio arquitetônico”, explica.

“Quem não se encanta ao entrar na Casa da Boia? Quem não se sente acolhido? Não tem algum tipo de emoção despertada? A Casa da Boia é mais do que um imóvel, é mais do que uma loja, é feita de comunidades. O encanador, o eletricista, o artesão, o artista acadêmico, o artista de rua, o profissional, o amador. Todos convivem neste ambiente criativo que ao mesmo tempo reverencia a sua história.

O que desejamos é isso, difundir nossa história e promover novas atividades trazendo esses grupos diversos para a Casa da Boia. É o cliente e essas comunidades, fazendo parte deste processo e construindo essa reinvenção do espaço e da cultura dentro da Casa da Boia”, finaliza Adriana.

…que culminou no reconhecimento público

Todos estes aspectos integrados, como bem resume Adriana, levaram a municipalidade a reconhecer a importância histórica que a Casa da Boia tem para a cidade de São Paulo, outorgando à empresa o Selo Valor Cultural da Cidade de São Paulo.

Selo “Valor Cultural” recebido pela Casa da Boia.

O selo foi criado pelo Conpresp em dezembro de 2015 e o Conselho do órgão deliberou pela concessão do selo à Casa da Boiaem 2016, junto com outros estabelecimentos que igualmente representam a história e a cultura da cidade: o Carlino Ristorante, as Padarias Italianinha,

e 14 de Julho, e dois prédios assinados por João Artacho Jurado em Higienópolis: os edifícios Parque das Acácias e o Parque das Hortênsias.

“A concessão deste selo de estabelecimento de valor cultural de São Paulo é um reconhecimento dos esforços que empenhamos para manter não apenas o nosso imóvel com suas características originais, mas também dos valores que norteiam a Casa da Bóia há mais de um século. Honestidade, bom atendimento, compromisso com nossos clientes, enfim, atitudes que não são mensuráveis, mas que conferem à empresa esta característica única que fazemos questão de preservar”, declara Mário Roberto Rizkallah, diretor da Casa da Bóia.

Uma história que pode ser assistida em documentário

A história da conservação deste verdadeiro patrimônio da cidade, o imóvel sede da Casa da Boia, foi contado no documentário Florêncio de Abreu 123 – A história de um ícone da arquitetura paulistana, lançado no ano de 2020, justamente para a Jornada do Patrimônio daquele ano.

O documentário de aproximadamente18 minutos procura demonstrar como o patrimônio imóvel, a empresa que o ocupa e a cidade de São Paulo são intrinsicamente ligados e como o tombamento do imóvel acabou por ser fundamental no desenvolvimento de uma forma de negócio reinventada.

Com roteiro de Eduardo Grigaitis, Diógenes Sousa e Renata Geraissati Castro de Almeida o vídeo foi originalmente produzido para a Jornada do Patrimônio 2020 e contou com a supervisão da Adriana e Mario Rizkallah, diretores da Casa da Boia e gestores do imóvel.

Ele pode ser assistido gratuitamente no Canal do Youtube da Casa da Boia, ou se preferir, no link ao final deste post.

Programe-se para a jornada cultural

Embora a Casa da Boia não abra suas portas para visitação, nosso sobrado histórico pode ser contemplado em toda sua grandiosa construção a partir de uma simples caminhada de 100 metros a partir da estação São Bento do Metrô.

A programação da Jornada do Patrimônio 2025 pode ser acessada no site da Prefeitura de São Paulo:

https://prefeitura.sp.gov.br/web/cultura/patrimonio_historico/jornada_do_patrimonio


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