Entre a inovação e a controvérsia um gigante da literatura brasileira

Há 143 anos, nascia em Taubaté, coração do Vale do Paraíba, José Bento Monteiro Lobato, uma das personalidades mais marcantes da cultura brasileira. Visionário e controverso, empreendedor de atitudes conservadoras, erudito com posições rudes, contraditório e genial, o escritor ficou imortalizado pela literatura infantil, algo até injusto diante da obra profunda, completa e instigante de Monteiro Lobato.

Retrato de Monteiro Lobato quando jovem.
Retrato de Monteiro Lobato quando jovem.

Em 18 de abril de 1882, em uma fazenda da área rural de Taubaté, interior de São Paulo, nascia o filho do casal José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Augusta Monteiro Lobato. Ele, fazendeiro, ela uma típica senhora da sociedade do Séc. XIX, filha do Visconde de Tremembé (José Francisco Monteiro).

Fundamental ressaltar a condição social brasileira e particularmente do Vale do Paraíba, no final do Séc. XIX, uma sociedade de renda extremamente concentrada, escravagista e que via a ascensão de uma burguesia que não simplesmente enriquecia com o café, mas com ele amealhava gigantescas fortunas alargando ainda mais o abismo entre os “Barões do Café” e os escravos e, depois, os trabalhadores das lavouras.

Este retrato social é fundamental para compreender o contexto da formação inicial do jovem Lobato e como isso se refletiu posteriormente ao longo de sua obra.

Em uma região economicamente próspera graças ao ciclo do café, Lobato cresceu imerso em um ambiente rural que marcaria profundamente sua obra e sua visão de Brasil. O Vale do Paraíba, no final do século XIX, vivenciava a transição de uma economia escravista para o trabalho livre, com a ascensão de uma burguesia cafeicultora que ditava o ritmo social e político da região, senão do país.

Na primeira infância, alheio certamente ao significado de seu contexto social, Lobato viveu no sítio que lhe serviria de inspiração para a criação do universo lúdico que construiria a partir de suas primeiras incursões pela literatura. O sítio onde realmente vivera viria a se tornar o local onírico, povoado por criaturas mágicas, conhecido por “Sítio do Pica Pau Amarelo”.

A vida entre São Paulo e o interior

Uma das habilidades menos conhecidas de Lobato era a de desenhista. Na imagem, um de seus primeiros desenhos.
Uma das habilidades menos conhecidas de Lobato era a de desenhista. Na imagem, um de seus primeiros desenhos.

Como boa parte dos jovens da época, cujo caminho natural era se tornar um “doutor”, Lobato se muda para São Paulo para cursar primeiramente o Instituto Ciências e Letras. Seu real desejo era fazer o curso de belas artes, mas alguns fatos de sua vida pessoal o fizeram “trilhar” o caminho mais ortodoxo.

Em junho de 1898, perdeu o pai, vítima de congestão pulmonar e sua mãe, vítima de uma depressão profunda, morreu exatamente um ano depois. Pressionado pelo avô, que precisava de um herdeiro para gerir as propriedades da família, Lobato decide cursar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde se forma em 1904, retornando para o interior em seguida a fim de comandar os negócios familiares.

Até meados de 1914/1915, Lobato se dividiu entre a administração das fazendas (seu avô já havia falecido) e a escrita de artigos para jornais diversos.

Urupês foi um choque na cultura nacional à época de seu lançamento.
Urupês foi um choque na cultura nacional à época de seu lançamento.

Durante o inverno seco de 1914, incomodado com a prática da “queimada” praticada pelos camponeses da região, Lobato escreve um artigo crítico à prática, intitulado “Velha Praga”, publicado no jornal O Estado de São Paulo, que provocou grande polêmica e abriu caminho para que Lobato escrevesse outros artigos como, por exemplo, Urupês, em que, pela primeira vez aparece um dos seus mais famosos personagens, o Jeca Tatu.

Jeca Tatu era a representação de um grande preguiçoso, um “caipira” inculto, indolente, improdutivo, totalmente diferente dos caipiras idealizados pela literatura romântica de então. 

Seu aparecimento gerou uma enorme polêmica, pois o personagem simbolizava o atraso e miséria que representava o campo no Brasil (seus trabalhadores e sitiantes mais modestos) em contraposição à “visão empreendedora e progressista” dos fazendeiros.

Não é difícil imaginar o debate que surge em torno do personagem e a repercussão que Lobato teria com este e seus futuros artigos e pensamentos, que o levaram a uma posição central na cena cultural dos anos 1920.

O movimento modernista, a “treta” com Anita Malfatti e sua atuação como editor

Nos anos 1920 Lobato já era um cronista, ensaísta e escritor de projeção, participante da elite cultural da cidade de São Paulo, para onde se mudara em definitivo em 1916, depois de vender as suas propriedades no interior.

 Muitas são as análises dos historiadores dos fatos que levaram à Semana de 22, mas há um certo consenso no fato de que Anita Malfatti e Monteiro Lobato protagonizaram, senão o surgimento, ao menos a consolidação de um grupo de artistas que viriam a protagonizar a Semana de Arte Moderna.

Uma das obras de Anita Malfatti duramente criticadas por Lobato.
Uma das obras de Anita Malfatti duramente criticadas por Lobato.

Em 1917, quando Anita, após um longo período de estudos na Europa, realiza em São Paulo uma exposição de seus quadros de estética nada convencional para os padrões conservadores da época, Monteiro Lobato faz uma crítica ao trabalho da pintora publicado no jornal O Estado de São Paulo, intitulado “A Propósito da Exposição Malfatti”.

O escritor não mede palavras para designar Anita como uma artista da geração “formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento”.

A crítica foi tão impactante que levou Anitta a uma depressão, provocou uma repulsa a seus quadros e a reação da nova geração de artistas paulistas que tomou as dores da pintora. Saíram em defesa de Malfatti, nomes como Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Emiliano Di Cavalcanti, entre outros.

A repercussão desse acontecimento e os esforços que os novos artistas passaram a empreender para divulgar o “modernismo” foram, possivelmente, as primeiras sementes da Semana de 1922.

Uma curiosidade. O espaço em que fora realizada a exposição de Anita, o salão do edifício nº 111, da rua Líbero Badaró, (hoje 332) é o restaurante Pirandello. Apesar da aparência semelhante a tantos outros do centro, em suas paredes os proprietários ainda cultivam a memória daqueles acontecimentos em charges e quadros.

O endereço fica bem aqui pertinho da Casa da Boia e vale uma passada para um café, um lanche ou almoço em um local tão importante da nossa cultura.

Pioneiro do acesso ao livro no Brasil e desafeto de Getúlio Vargas

Voltando a Lobato, ele não foi só o escritor de sucesso que conhecemos hoje. Teve uma importantíssima atuação como fomentador da literatura.

Ele dizia que “livro é sobremesa: tem que ser posto debaixo do nariz do freguês”. Com isso em mente, após comprar a Revista do Brasil, que logo transformou em editora, passou a tratar os livros como produtos de consumo, com capas coloridas e atraentes, além de uma produção gráfica impecável. Criou também uma política de distribuição, novidade na época: vendedores autônomos e distribuidores espalhados por todo o país comercializavam os livros produzidos.

Detalhe de correspondência da Editora Nacional
Detalhe de correspondência da Editora Nacional, fundada por Lobato.

Logo fundou a editora Monteiro Lobato & Cia., depois chamada Companhia Editora Nacional, com sede no centro de São Paulo. A editora foi responsável não só pelo lançamento da maior parte dos livros de Lobato, como pela publicações de outros autores, traduções de clássicos da literatura mundial e pelo pioneirismo na produção e distribuição de livros didáticos no país.

Em paralelo à sua atividade empresarial Lobato mantinha posições bastante arraigadas sobre questões nacionais.

Em plena ditadura do Estado Novo, nos anos 1930, Lobato se indispôs com Getúlio Vargas, que aliás, havia feito vários acenos ao autor para integrar o governo, ao defender a soberania nacional sobre a exploração do petróleo e do minério de ferro brasileiros, que o governo negociava com multinacionais estrangeiras. 

Ele mesmo tentou se articular e operar (sem grande sucesso) uma empresa de exploração de petróleo no Brasil. 

As rusgas com Vargas acabam levando Lobato à prisão 

Retrato de sua ficha no Sistema Penitenciário.
Retrato de sua ficha no Sistema Penitenciário.

Em 1940 o general Júlio Caetano Horta Barbosa, presidente do Conselho Nacional do Petróleo, acusa o escritor de crime contra a segurança do Estado e a ordem social por suas cartas dirigidas a Vargas e artigos em defesa do petróleo nacional.

No processo que se segue são ouvidas diversas testemunhas, inclusive o próprio Monteiro Lobato, que reitera sua opinião e confirma ter escrito as suas cartas.

Em seguida, seu escritório é vasculhado e documentos apreendidos. O escritor é levado à DEOPS, qualificado e transferido para a Casa de Detenção (Presídio Tiradentes), onde permaneceu incomunicável durante quatro dias.

Interrogado, assume inteira responsabilidade sobre as cartas enviadas a Vargas e Góis Monteiro.

Depois de dois julgamentos, em março de 1941, Lobato foi condenado pela ditadura Vargas a dois anos de prisão, mas que acabaram durando pouco mais de três meses apenas. Em junho daquele ano, Getúlio acaba por indultar o escritor, muito em função da repercussão que sua prisão teve na sociedade.

A literatura infantil e seus personagens eternos

O livro que iniciou a carreira literária infantil de Lobato.
O livro que iniciou a carreira literária infantil de Lobato.

A incursão de Monteiro Lobato na literatura infantil transformou para sempre a forma como as crianças brasileiras se relacionavam com os livros. 

Cansado da literatura infantil excessivamente distante da realidade brasileira, representada por clássicos mundiais e histórias centradas nas tradições e personagens de origem europeia, Lobato criou um universo mágico, divertido e essencialmente brasileiro, que transcorria no Sítio do Picapau Amarelo. 

Sua primeira obra infantil de grande sucesso foi “A Menina do Narizinho Arrebitado” (1920), que introduziu personagens icônicos como a boneca de pano Emília, o sabugo de milho Visconde de Sabugosa (inspirado em seu avô), a esperta Narizinho, a bondosa Dona Benta (inspiração vinda de sua mãe), a cozinheira Tia Nastácia e o menino Pedrinho.

Este núcleo principal, tinha ainda a interação de personagens mágicos, como o Saci, a feiticeira Cuca,o  Burro Falante e o Rinocerante Quindim.

A Literatura infantil de Lobato tem o mérito de valorizar, com uma linguagem acessível e envolvente, a cultura popular brasileira e a presença de personagens cativantes que vivem aventuras emocionantes e educativas. 

O Sítio do Picapau Amarelo se tornou um microcosmo do Brasil, onde temas como folclore, história, ciência e cidadania são abordados de forma lúdica e inteligente, tanto que o legado de sua obra infantil é cultivado vorazmente um século depois da criação de seus personagens.

O Sítio do Picapau Amarelo teve sua primeira adaptação para TV em 1977.
O Sítio do Picapau Amarelo teve sua primeira adaptação para TV em 1977.

Não menos importante é a literatura adulta

Paralelamente à sua obra infantil, Monteiro Lobato desenvolveu uma vasta produção literária voltada para o público adulto. Seus romances, contos e ensaios abordavam temas como o atraso do Brasil rural, a crítica à elite agrária, a defesa da industrialização, o nacionalismo e a análise da psicologia humana.

Livros como “Urupês” (1918), “Cidades Mortas” (1919), “O Presidente Negro” (1926), “O Escândalo do Petróleo” (1936) são exemplos de obras que se debruçam sobre o Brasil rural e industrial.

A Sombra do racismo persegue o escritor

Parte da obra de Monteiro Lobato é considerada racista.
Parte da obra de Monteiro Lobato é considerada racista.

Nas últimas décadas, a obra de Monteiro Lobato tem sido alvo de críticas significativas devido a representações consideradas racistas presentes em alguns de seus livros, tanto na literatura infantil quanto na adulta. 

Analistas apontam para descrições pejorativas de personagens negros, estereótipos e a reprodução de uma visão hierárquica entre raças. Vale mais uma vez ressaltar, antes de se pensar no “cancelamento” do escritor, que ele é fruto de sua época. Branco, rico, pertencente a uma elite cultural cuja geração anterior era abertamente escravagista e habitava um Brasil de profundas desigualdades (diga-se de passagem, perpetuada por pessoas nas condições sociais do próprio Lobato.)

Em obras como “Caçadas de Pedrinho” e em trechos de outras narrativas, encontram-se passagens que descrevem personagens negros de forma caricatural, utilizando termos e expressões que perpetuam preconceitos raciais.

Por exemplo, em algumas descrições de Tia Nastácia, sua aparência física e seu comportamento são apresentados de maneira estereotipada e inferiorizada.

Em “Reinações de Narizinho”: “Tia Nastácia era preta retinta, beiçuda, de beiços grossos e moles que nem borracha.” Essa descrição, focada em traços físicos associados a estereótipos raciais, é ofensiva e contribui para a perpetuação de uma visão negativa da população negra.

Outro exemplo reside na forma como alguns personagens negros são retratados em situações de subalternidade e ignorância, reforçando uma hierarquia racial implícita nas narrativas. As obras “Negrinha” e “O Jardineiro Timóteo” reforçam esses estereótipos.

Se hoje a evolução social nos mostra inadequadas, ofensivas essas passagens, é preciso olhar a obra de Lobato sob a ótica histórica.

Nesse contexto, ainda que se possa argumentar o caráter racista e elitista de muitos de seus textos, é inegável a contribuição que este paulista de Taubaté trouxe para a cultura literária brasileira.

Monteiro Lobato faleceu na capital paulista, em 4 de julho de 1948 e seu corpo está sepultado no Cemitério da Consolação.

Túmulo do escritor no Cemitério da Consolação.

Fontes:

https://monteirolobato.com/

https://www.elfikurten.com.br/2012/03/monteiro-lobato.html

https://www.monteirolobato.sp.gov.br/pagina/24/sitio-do-pica-pau-amarelo

https://pt.wikipedia.org/wiki/Monteiro_Lobato

https://jornal.unesp.br/2022/02/25/monteiro-lobato-rasgado-queimado-cancelado-e-imprescindivel/

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/monteiro-lobato-da-minha-infancia

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