O final da década de 1970 foi um período intenso para a sociedade brasileira. A ditadura dava sinais de estar chegando ao fim, a inflação que passaria a assolar o país nos próximos anos se avizinhava. A produção artística musical passava pelo domínio das grandes gravadoras multinacionais e das rádios. Neste caldo efervescente, surgiu em São Paulo um movimento artístico-cultural cujo objetivo era a produção artística independente.
Rua Teodoro Sampaio, 1091, bairro de Pinheiros. Hoje uma lanchonete comum em cujo porão, provavelmente se estocam alimentos e bebidas, bem em frente à Praça Benedito Calixto, um reduto de antiquários e artesãos que aos sábados compõem a famosa feira de antiguidades. Nada no imóvel indica que aquele porão, entre 1979 e 1986, foi literalmente o palco de um movimento cultural despretensioso, mas que influenciou a música brasileira desde então.

Foi naquele porão que o músico Wilson Souto Jr e o amigo administrador Valdir Galeano viram a oportunidade de realizar a vontade de “fazer algo relacionado às artes”, como conta o próprio Wilson ao Sesc, em entrevista publicada em 2019.
Segundo relata, Wilson comentou a vontade de abrir um teatro com o amigo, que aceitou participar da aventura. Juntos partiram para a busca de um espaço:
“…começamos a procurar um lugar. Num dos anúncios tinha um espaço na Teodoro Sampaio, número 1091-a, que falava em 400 metros quadrados. Achamos estranho e fomos ver. Era um porão com pé direito extremamente generoso, de 4,20 metros e com outra vantagem, uma viela sanitária que terminava nos fundos do imóvel, na qual pudemos abrir uma porta muito grande e construir uma escada muito grande… começamos a reformar junto com uns amigos porque o lugar estava completamente detonado.
Um dia andando na Teodoro pra comprar material, encontramos o pessoal da banda da Gota D’Água que voltava de um ensaio. Falei pra eles que tava fazendo um teatro, ou um circo, ainda não sabemos o que vai ser, mas é um espaço com uma arquibancada. E eles me disseram ‘pô, o Sérvulo (Augusto) tá escrevendo uma peça junto com o (José Rubens) Chachá chamada É Fogo Paulista, que é um musical’.
Falei pra eles ‘por que vocês não vão conhecer o lugar e quem sabe a gente não monta lá?’. Na hora que eles viram eles se apaixonaram e trouxeram o diretor Mario Masetti, uma das pessoas mais incríveis que eu conheci, que topou na hora o desafio de fazer e reuniu um elenco muito importante. A peça foi um sucesso quase que imediato”.
O início em tempos sem redes sociais e o surgimento dos artistas de vanguarda

“Além do palco e da arquibancada, tínhamos um espaço para exposição de quadros, uma pequena livraria em que algumas editoras colocavam livros de contracultura, e a gente tinha um freezer com cerveja e refrigerante. O mesmo cara que vendia as bebidas também cuidava de um carrinho de pipoca.
A peça inicial deixava o teatro com segunda e terça livres, além de sexta e sábado depois da meia noite. Os caras da Vila Madalena começaram a me propor shows nesses dias. A coisa foi muito rápida. Começamos a fazer teatro infantil de sábado a tarde. Depois tinha a peça às nove e show à meia noite”, conta Wilson.
A proximidade do teatro com a efervescência cultural da Vila Madalena (muito diferente do que é hoje), então um bairro residencial, com muitas casas alugadas para estudantes da USP, ateliês, bares despretensiosos, artistas em início de carreira, levava ao Lira todo tipo de público.

Wilson conheceu os músicos Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé, artistas extremamente criativos que passaram a frequentar o local cuja fama de “independente” passava a atrair outros artistas em início de carreira. Principalmente, que não se enquadravam naquilo que as gravadoras consideravam “comercial”.
Logo o Lira Paulistana passou a apresentar shows de artistas de “vanguarda”, performances ousadas e experimentação musical.
“Essa fama de um espaço lançador e a vivência do Arrigo me fizeram ter vontade de montar uma gravadora. O primeiro disco foi exatamente do Itamar Assunção, que eu produzi. E isso foi movimentando. Veio Rumo, veio Premeditando o Breque, veio todo movimento dessa moçada que tava produzindo de uma maneira esparsa…então começou a ter de fato um conceito de Vanguarda Paulistana, mas era um nome genérico. Não tinha um estilo. Era muito mais uma história comportamental e de oportunidade”, lembra Wilson.

“Era uma catacumba. Lá aconteciam coisas que não aconteciam na superfície”, diz Luiz Tatit, o mentor do Grupo Rumo, sobre a liberdade de criação que habitava o porão do Lira. Todos eram bem recebidos. Os artistas independentes, que não tocavam nas rádios e na televisão, que não faziam música comercial. Os ‘marginais’, como chegaram a ser chamados à época. E o Grupo Rumo é um dos grandes exemplos dessa vontade de criar e de se expressar que chegava no momento em que o regime militar brasileiro dava claros sinais de cansaço”.
Vanguarda Paulistana. O movimento que rompeu a bolha do “alternativo”

O termo Vanguarda Paulistana não foi um rótulo autoproclamado, até porque, não foi um movimento “orquestrado” por uma liderança, mas sim uma classificação criada por jornalistas e críticos para tentar definir a explosão simultânea de criatividade que ocorria na cidade de São Paulo e que “afunilava” no palco do Lira Paulistana.
O movimento surgiu da reunião de músicos, muitos deles com formação acadêmica (como Arrigo Barnabé, oriundo da Escola de Comunicações e Artes da USP – ECA), com artistas autodidatas e de diversas origens (como Itamar Assumpção, que vinha do interior), todos compartilhando o desejo de fazer uma música nova, livre das amarras comerciais e da censura.

Arrigo Barnabé (com sua ópera-rock “Clara Crocodilo”), Itamar Assumpção (com uma linguagem afro-urbana e poética visceral), o Premeditando o Breque (Premê) e o Grupo Rumo (com foco no humor, na sátira e na releitura do samba e do breque) são alguns dos nomes mais lembrados deste movimento, mas ele catalisou muito mais artistas de vertentes, origens e estilos diferentes em uma diversidade experimental única.
Além dos paulistas o movimento acolheu vertentes como o “sertanejo lisérgico” de Tetê Espíndola, cantora natural de Mato Grosso do Sul que se consagrou a se aliar a Arrigo Barnabé – sendo a primeira a gravar uma canção dele, em seu disco solo Piraretã, de 1980.
Outro nome que rompeu barreiras foi o músico Passoca (Marco Antônio Vilalba). Conhecido como o “violeiro da vanguarda”, ele trouxe o som da viola caipira – até então marginalizado pela MPB erudita – para o centro do debate experimental. Passoca provou introduziu ao movimento a busca por uma nova linguagem musical cuja premissa era a de que “toda arte tem que ser experimental”.
Junto ao sertanejo de Tetê e ao “caipira” de Passoca, nomes como Ná Ozzetti e Dante Ozzetti trafegavam entre o erudito e o popular. Suzana Salles, Eliete Negreiros e Vânia Bastos também se notabilizaram pela qualidade vocal e por um repertório experimental.
Muitos desses artistas tiveram discos lançados pela gravadora independente Lira Paulistana e a relevância de sua produção artística rompeu a bolha do “alternativo”. O movimento chegou até a ser chamado de “a maior novidade na música brasileira desde a Tropicália”.
Os “vanguardistas” ganham espaço na mídia

Se o Lira Paulistana foi o catalisador deste movimento com seu teatro, a gravadora e uma pequena editora, vale lembrar que a ousadia de alguns programas da TV aberta (aliás, TV por assinatura era uma realidade muito distante naqueles anos 80) ajudaram a romper a bolha dos “iniciados” e revelou para um público maior o que acontecia no entorno do Lira.
O programa “A Fábrica do Som” da TV Cultura foi ao ar entre 1983 e 1984, apresentado pelo multi artista Tadeu Jungle e gravado no Teatro Sesc Pompéia, era uma verdadeira mostra permanente desta nova música brasileira. O objetivo ousado do programa, que talvez só se concretizou por ser exibido em uma TV pública, era promover e incentivar a pesquisa musical divulgando obras inéditas e originais.
Além das performances dos artistas ligados à Vanguarda Paulistana, o musical apresentou na televisão, pela primeira vez, bandas como Ultraje a Rigor, Paralamas do Sucesso, Ira! e Titãs, além de abrir espaço, frequentemente, para outras manifestações artísticas de vanguarda, como a poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos.
O programa se estabeleceu como um dos marcos televisivos mais importantes da época, traduzindo o espírito de liberdade criativa da Vanguarda para a tela do televisor e ampliando a visibilidade sobre o movimento.
O paradoxo do Festival dos Festivais

O movimento da Vanguarda Paulistana tinha em si uma atitude tão anárquica, que, por mais paradoxal que possa ser, alguns de seus integrantes ganharam notoriedade na cultura de massa da época ao participar daquilo que a TV Globo chamou de “Festival dos Festivais”.
Em 1985 a Globo reeditou com grande sucesso a fórmula dos festivais de MPB que a TV Record realizou na década de 1960. Foi um evento de grande magnitude no cenário musical, promovido pela maior rede de TV do país, no qual cerca de 12 mil compositores se inscreveram para competir pelo prêmio em dinheiro, que reconheceria as melhores músicas, arranjos, letras, intérpretes e revelações.
Mais do que isso, aparecer no festival significava projeção nacional em um mercado cultural, como já dissemos, dominado por grandes gravadoras, redes de rádio e TV. No contexto do festival ganharam notoriedade nomes que se tornaram relevantes na música nacional, como Oswaldo Montenegro, Leila Pinheiro e Emílio Santiago.
As bandas da Vanguarda Paulistana Joelho de Porco, com a música “A Última Voz Do Brasil”, Língua de Trapo, com “Os Metaleiros Também Amam”, o grupo Tarancón, com “Mira Ira” e Tetê Espíndola, com “Escrito nas Estrelas”, tiveram grande repercussão em suas apresentações.
Ao final, a “alternativa” Tetê Espíndola foi a vencedora, deixando Mira Ira, de Lula Barbosa, interpretada pelo Tarancón em segundo. Ambas as apresentações da final foram marcadas por uma catarse do público que lotou o ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, e acabaram projetando o movimento alternativo paulistano no cenário nacional.
O fim do Lira Paulistana
Independente desde sua concepção, o Lira Paulistana durou até 1986. Projetos pessoais dos fundadores, um novo cenário na cultura da cidade, problemas com a prefeitura que interditou o teatro por três vezes e os novos rumos dos artistas do núcleo foram determinantes para o fim das atividades do espaço cultural que, em seus sete anos de atividades despretensiosas escreveu uma história importante na cultura brasileira.

Fontes:
https://programatahligado.wordpress.com/2013/12/03/lira-paulistana-e-a-vanguarda-paulista/
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termos/196072-vanguarda-paulista
https://memorialdaresistenciasp.org.br/lugares/teatro-lira-paulistana
https://www.sescsp.org.br/editorial/como-surgiu-o-lira-paulistana



