Quando olhei a terra ardendo, qual fogueira de São João, eu perguntei a Deus do céu: porque tamanha judiação? Se você é brasileiro, e já tem idade para amarrar seus sapatos, apostamos que já ouviu os versos da canção Asa Branca, de Luiz Gonzaga, cuja primeira gravação completou nada menos do que 78 anos no último dia 3.

Três de março de 1947. Estúdios da RCA Victor, no Rio de Janeiro. Naquela segunda-feira, o músico Luiz Gonzaga e sua banda registraram pela primeira vez o fonograma daquela que viria a se tornar uma das mais conhecidas canções brasileiras, com, ao menos, 550 regravações documentadas por uma diversidade de artistas que vão de todos os ícones nordestinos, como Dominguinhos, Zé Ramalho, Elba, até ícones da música internacional como David Byrne.
Composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, Asa Branca narra de forma lírica e poética, a situação da extrema seca que os sertanejos no nordeste brasileiro enfrentavam naqueles anos 40. Gonzaga e Teixeira expressaram a desesperança do homem frente à implacável natureza da região contando que “por falta d’água perdi meu gado, morreu de sede meu alazão”.
Na canção, a Asa Branca, uma espécie de pombo, típico das áreas do sertão nordestino, que tem como característica uma faixa de penas brancas em suas asas, (daí seu nome), vendo tanta seca, resolve deixar o sertão: “até mesmo a Asa Branca, bateu asas e voou”. Diante da desolação de ver uma ave tão resiliente deixar o sertão, o personagem humano da letra também decide migrar: “entonce eu disse: adeus, Rosinha guarda contigo meu coração”.
Ainda na magnífica narrativa da canção, o migrante que deixa sua esposa para tentar a vida em outras terras não abandona o seu sertão, e, com esperança, aguarda o momento de poder retornar e conforta sua amada:
“Hoje longe, muitas léguas, numa triste solidão, espero a chuva cair de novo, pra mim vortá’ pro meu sertão”
“Quando o verde dos teus óio se espaiar na plantação, eu te asseguro, não chore, não, viu que eu voltarei, viu, meu coração”.
Canção retrata o êxodo dos nordestinos

Segundo o site oficial da Assembleia Legislativa de São Paulo, em matéria publicada em 19/06/2024, entre os anos de 1930 e 1950, os estados do Nordeste vivenciaram uma diáspora de sua população, que migrou para o Sul do país em busca de condições para a subsistência.
Nas primeiras décadas do Século XX a região nordeste era extremamente pobre, e não desenvolvida. Não oferecia meios de emprego e a maioria das terras pertencia a poucas famílias dos “coronéis”.
“A partir de 1930, a gente pode falar da transformação da migração nordestina para São Paulo em um fenômeno de massa”, explica o coordenador do Museu da Imigração, Henrique Trindade. “Esse fenômeno tem uma continuidade nas décadas subsequentes. A gente tem um grande número de entradas de migrantes nacionais”.
De acordo com os registros do Museu da Imigração, cerca de 1,75 milhão de migrantes brasileiros, em sua maioria nordestinos, passaram pela hospedaria na primeira metade do Séc. XX.
Apesar de ser incerto o número de nordestinos que deixaram suas terras com destino a São Paulo, dados do Ipea e do IBGE, publicados em 2011, revelaram que aproximadamente 30% da população da Região Metropolitana de São Paulo era formada por pessoas que vieram das regiões Norte e Nordeste do país.
Ao mesmo tempo em que os estados do Nordeste careciam de investimento, incentivo e condições para o seu desenvolvimento, os estados do Sul/Sudeste viviam um crescimento extraordinário, com as cidades se verticalizando e adensando, principalmente a cidade de São Paulo.
Esse movimento fez com que os migrantes nordestinos encontrassem nas grandes cidades do Sul/Sudeste farta oferta de emprego em ocupações ligadas à infra-estrutura, principalmente a construção civil.
A farta oferta de emprego não significava, necessariamente, uma melhoria da qualidade de vida, pois eram empregos que remuneram mal, as condições de trabalho eram ruins e um paradoxo fez com que esses trabalhadores ficassem à margem do progresso que eles mesmo construíram: o crescimento das cidades com edificações predominantemente feitas com mão-de-obra nordestina não permitia que estas pessoas tivessem poder de compra para habitar esses novos edifícios, “empurrando” esta massa trabalhadora para as periferias.
Cultura forte e rica uniu os migrantes em São Paulo

O Brasil é uma nação/continente que tem uma diversidade e uma qualidade cultural riquíssima. Em qualquer canto de nosso país se encontram talentos de todas as artes. Não é diferente no Nordeste. Ao contrário. Da gastronomia à literatura, das artes plásticas à música, a produção cultural nordestina contribui para a formação da memória de nosso país.
Assim, os migrantes nordestinos que passaram a viver em São Paulo se mantiveram unidos por uma identidade cultural muito forte e um sentimento de pertencimento que culminaram na formação do Centro de Tradições Nordestinas.
Conhecido como CTN, foi fundado em maio de 1991 pelo empresário e radiodifusor José de Abreu. O centro nasceu com o objetivo de combater o preconceito contra os migrantes nordestinos em São Paulo e desde seus primeiros anos, o CTN se destacou por seu trabalho social, desenvolvido principalmente na zona norte da cidade, mas também em outras regiões. Em 2003, conquistou os títulos de Organização de Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e de Utilidade Pública Municipal.
Conhecido como “um pedacinho do Nordeste em São Paulo”, o CTN é o maior ecossistema de cultura nordestina do Brasil, oferecendo experiências que celebram a música, gastronomia, cultura, fé e solidariedade. Hoje, atrai mais de 1 milhão de pessoas por ano, incluindo nordestinos, paulistanos e turistas.
O espaço fica na rua Jacofer, 615, bairro do Limão e hoje é um centro que reúne restaurantes, realiza shows e atividades culturais variadas, feiras de artesanato, mural de empregos, tem programação de cursos profissionalizantes, atividades sociais, realiza casamentos e batizados comunitários e mantém até uma rádio, a Rádio Atual.
O Rei do Baião ainda reina em São Paulo

Se Asa Branca se tornou quase o hino de uma “nação nordestina”, sendo uma das mais conhecidas do compositor pernambucano, a influência da música de Luiz Gonzaga é gigante na cultura nacional: Xote das meninas, Vida de viajante, Sabiá, Assum Preto, Baião são apenas algumas das centenas de músicas de Gonzaga das quais basta os primeiros acordes para que a gente saia cantando, como se já nascêssemos com a letra decorada.
Luiz Gonzaga já foi aclamado em outros Carnavais, como no enredo da Unidos da Tijuca, em 2012 e mais recentemente como tema da escola paulistana Mancha Verde, em 2023, com o desfile “Viva o Rei do Baião!”.
No desfile da escola Águia de Ouro, no último sábado, 1 de março, com o tema “Em Retalhos de cetim, a Águia de Ouro do jeito que a vida quer”, a tradicional escola de samba paulistana prestou uma homenagem ao compositor e cantor Benito di Paula.
Dentre as passagens da vida do artista carioca, mas radicado na cidade de São Paulo, um carro alegórico chamava atenção para a relação de amizade que Benito manteve com Luiz Gonzaga, desde que se conheceram.
Benito compôs a canção “Sanfona Branca”, que, segundo a autora do livro “A Saga de Luiz Gonzaga”, a escritora francesa Dominique Dreyfus, foi uma das homenagens que mais emocionaram o artista.
Em retribuição, Gonzaga escreveu com Aguinaldo Batista a canção “Chapéu de couro e gratidão”.

A Águia de Ouro trouxe para seu desfile do último sábado, justamente um carro alegórico de nome “Sanfona Branca” que, assim como Benito, reverenciou Gonzaga.
Além desta homenagem, vários são os blocos do carnaval paulistano, que abordam as músicas de Luiz Gonzaga, como o tradicional Monobloco, que toca marchinhas, samba, xote, forró, funk, e canções de vários artistas e o Bloco do Baião, que dedica boa parte de seu repertório ao artista.
Cultura nordestina já esteve presente na Casa da Boia

No ano em que comemorou seus 120 anos, em 2018, uma das atividades programadas para a comemoração foi uma série de apresentações que aconteceram na loja em dezembro daquele ano dos artistas Sebastião Marinho e Luzivan Matias.
A dupla apresentou-se na Casa da Boia com um cancioneiro nordestino, repentes inspirados no cotidiano da loja e ainda cantaram um cordel, escrito por Sebastião Marinho, sobre a vida de Rizkallah Jorge Tahan, nosso fundador.
Quem tiver curiosidade e quiser ler o trabalho do cordelista sobre a Casa da Boia e Rizkallah Jorge pode acessar aqui os cordéis, que tem capa da artista plástica Adriana Rizkallah.